06 de Julho de 2025
A frase inicial que inspirou este artigo – "Que nada, eu tinha sobrepeso e todos os problemas os médicos relacionavam ao peso, daí eu perdi peso e os médicos começaram a dizer que eram hereditários" – não é apenas um desabafo isolado. É um sintoma agudo de uma crise profunda na medicina contemporânea: a hiperfocusagem no biológico e a cegueira sistêmica para o social. Enquanto tratamos corpos desconectados de seus contextos, ignoramos que a verdadeira patologia muitas vezes habita no território, não no gene.
Parte 1: O Mito da Explicação Unidimensional
Durante décadas, a narrativa dominante sobre doenças mentais como depressão e ansiedade orbitou em torno de desequilíbrios químicos, especialmente a famosa (e superestimada) serotonina. Apesar do marketing farmacêutico, pesquisas recentes desmontam esse reducionismo:
- A falácia da serotonina: Estudos longitudinais e meta-análises robustas demonstram que não há correlação direta entre baixos níveis de serotonina e depressão. A eficácia de antidepressivos que aumentam a serotonina é questionável em casos leves/moderados, atuando mais como placebos sofisticados.
- Genética vs. Ambiente: Embora fatores hereditários existam (ex.: risco 3x maior para filhos de depressivos graves), seu peso é mínimo sem gatilhos ambientais. Transtornos de ansiedade, por exemplo, surgem de "uma combinação de fatores genéticos e ambientais", com peso significativo de contextos adversos.
A medicina tradicional tropeça aqui: confunde predisposição com destino biológico.
Parte 2: Determinantes Sociais da Saúde (DSS) - A Arquitetura Invisível da Doença
Conforme definido pela OMS e consolidado no Portal DSSBR/Fiocruz, DSS são: "As circunstâncias nas quais as pessoas nascem, crescem, trabalham, vivem e envelhecem, moldadas por sistemas econômicos, políticos e sociais".
Esses fatores não são "meros influenciadores" – são alicerces estruturais que definem quem adoece, como adoece e quem terá acesso à cura.
Tabela: Como os DSS Moldam Transtornos Mentais Específicos
Parte 3: Casos Concretos - Quando o Coletivo Invade o Corpo
• Ambiente de Trabalho Tóxico = Hipervigilância e Burnout
Ambientes laborais com alta demanda/baixo controle ativam respostas neuroendócrinas similares às de ameaças físicas. O desemprego, por sua vez, eleva em 40% o risco de depressão e triplica pensamentos suicidas . Não é "fraqueza individual" – é violência estrutural metabolizada.
• Poluição do Ar: O Inimigo Invisível do Cérebro
Partículas finas (PM2.5) de combustíveis fósseis não afetam só pulmões: cruzam a barreira hematoencefálica, gerando neuroinflamação. Crianças expostas no útero têm maior risco de TDAH e depressão; adultos desenvolvem ansiedade e piora cognitiva . A luta climática é também uma luta por saúde mental.
• Educação Como Vacina Social
Um estudo brasileiro pioneiro com dados da PNAD revelou: cada ano adicional de estudo reduz até 7% o risco de depressão, especialmente em mulheres. Educação não é apenas ascensão econômica – é empoderamento cognitivo para navegar adversidades.
Parte 4: Além do Divã - Repensando Tratamentos e Políticas
A terapia tradicional falha quando ignora que a cura exige mudança material, não apenas introspectiva. Abordagens inovadoras surgem:
- Terapia Contextual: Incorpora análise de DSS no plano terapêutico (ex.: mapear desertos alimentares ao tratar compulsões).
- Prescrição Social: Médicos do SUS prescrevendo acesso a CRAS, programas de renda básica ou hortas comunitárias.
- Ambientoterapia: Intervenções urbanas (redução de ruído, áreas verdes) como política de saúde mental .
Conclusão: Da Patologia Individual à Cura Coletiva
A frase que abre este artigo expõe mais do que um erro diagnóstico – revela a medicalização da desigualdade. Enquanto a medicina tratar sintomas ignorando que continuaremos otimizando pílulas para suportar o insuportável. Saúde mental não se constrói com mais sertralina, mas com justiça social, cidades habitáveis e economias que não nos esgotem. O desafio que fica é revolucionário: fazer da luta por equidade o mais potente psicofármaco do século XXI.
PARA AGIR HOJE:
1. Exija anamnese social em consultas: "Quais seus desafios de moradia/trabalho/renda?"
2. Apoie políticas de equidade: Renda básica universal = redução de 20% em depressão.
3. Desnaturalize o sofrimento: "Isso é tristeza ou resposta legítima a um mundo adoecido?"
*Fontes Principais: Portal DSSBR/Fiocruz , OPAS , SciELO (Determinantes da Depressão no Brasil) , Estudos sobre Contaminação e Saúde Mental.