(Artigo Provocativo)
A psicanálise ergueu-se como uma revolução no entendimento da mente humana, mas suas fundações estão rachadas por uma contradição indelével: como um judeu perseguido, cuja teoria desvendou os subterrâneos da repressão, pôde silenciar as vozes que ecoavam as mesmas opressões que ele sofria? Freud desafiou tabus, mas sua obra é também um monumento aos limites éticos do intelectual privilegiado em um mundo estruturado para esmagar os "outros".
I. O Arquivo como Campo de Batalha: lacunas que falam
Quando biógrafos descartam a hipótese da homossexualidade de Freud por "falta de evidências", celebrando ao mesmo tempo seu suposto caso heterossexual com a cunhada Minna Bernays, revela-se um jogo perverso de dupla régua historiográfica. Onde estão os diários queimados? As cartas censuradas por Anna Freud? Os rastros de uma Viena onde homossexuais eram caçados e judeus, como Freud, fugiam para Londres sob ameaça nazista? A ausência de prova não é neutralidade: é sintoma de um aparelho de poder que controla narrativas. Quem tem acesso ao arquivo decide quem merece existir na história.
"Os oprimidos não deixam registros — deixam lacunas. E nessas lacunas, reside sua verdade mais crua."
II. A Falácia da Neutralidade Científica
Freud insiste: sua teoria é sobre a psique universal. Mas que universalidade é essa que ignora o patriarcado, o colonialismo e a miséria operária? Enquanto mulheres queimavam sutiãs em suffragette e homossexuais organizavam o primeiro movimento de direitos na Alemanha, Freud reduzia a experiência feminina à "inveja do pênis" e a homossexualidade a um "desvio do desenvolvimento edípico". Não era ignorância: era cumplicidade. Ele conhecia os escritos de Marx, via a violência antissemita, sabia dos riscos da cocaína — mas escolheu pactuar com a ordem burguesa que o aceitaria como "gênio" se ele não abalasse seus pilares.
III. O Preço da Aceitação: o judeu que virou patriarca
Sua fuga de Viena em 1938 é emblemática: um homem que sobreviveu ao ódio racial, mas cuja teoria nunca enfrentou o racismo, o sexismo ou a homofobia como estruturas de poder. Para Freud, a opressão era um drama psíquico individual — nunca um sistema. Enquanto Frantz Fanon denunciava o trauma colonial no corpo negro, e Virginia Woolf esquadrinhava o androcentrismo literário, a psicanálise seguia psicologizando a miséria social. O Complexo de Édipo não explicava mães espancadas, nem filhos de favelas — explicava a angústia da elite branca europeia.
IV. As Vozes que Freud Calou
Onde estão as pacientes lésbicas de Freud, como Emma Eckstein? O que diriam seus cadernos sobre o "tratamento" de sua homossexualidade como neurose? E os colonizados, cujas culturas Freud reduziu a "fases primitivas" do desenvolvimento psíquico em Totem e Tabu? A psicanálise nasceu como uma ciência que diagnosticou o sintoma, mas anestesiou o sofrimento político. Enquanto Freud fumava charutos em seu consultório de Viena, Bertha Pappenheim (a "Anna O.") fundava ligas feministas contra o tráfico sexual. Quem, de fato, entendeu a gênese da opressão?
V. Perguntas que Ardem (e não se apagarão)
Pode um oprimido tornar-se opressor? Freud provou que sim: judeu perseguido, mas misógino teórico.
É legítimo celebrar um revolucionário que traiu os revolucionários? Sua teoria libertou o desejo, mas o aprisionou em normas heterossexuais.
Onde estão os arquivos dos "degenerados"? As cartas de Freud foram preservadas; as de seus pacientes queer, perdidas na fumaça do preconceito.
Quem tem direito à complexidade? Freud é "genial" apesar de seus erros; as vítimas de sua teoria são "casos clínicos".
Epílogo: O Silêncio como Herança
Freud morreu em 1939, deixando um legado que ainda sangra. Sua estátua ergue-se em universidades, enquanto teóricas feministas, queer e decoloniais desmontam seus mitos. A psicanálise não será redimida até que reconheça: suas páginas estão manchadas pelo sangue dos corpos que patologizou. Talvez a pergunta final não seja sobre Freud, mas sobre nós:
"Quantas violências ainda justificamos em nome da 'ciência'? Quantos arquivos dos oprimidos continuamos a queimar?"
Este artigo não oferece respostas. Provoca incêndios.